SOMENTE HOJE: Preços promocionais ao ensejo daqueles que se desesperam por não ter; a outros disfarçados de SER; e ainda para todos os tolos que se abdicam de TER e SER.
ENTRADA PELAS PORTAS LATERAIS: Facilite o acesso, usando-as. Evitem a porta frontal, pois é privativa dos idiotas por natureza, nobres por circunstâncias, e desvairados, por prazer.
Como uma marionete, manipulada por fios invisíveis, adentrei o recinto, usando por precaução as entradas laterais.
COVARDES BENDITOS, ESCOLHIDOS E ILUMINADOS! POR GENTILEZA, ENTREM!
Confesso que ao ingressar ao recinto sentia-me constrangido e humilhado, mas por alguma razão desconhecida não me foi possível recuar.
Dançarinas nuas conduziam o publico as toaletes, onde havia armários, além de um jogo precioso de espelhos.
DEIXAI AQUI VOSSAS FANTASIAS! SEJAI INDIFERENTES A ELAS!
Completamente nu, ocupei a quarta fila. Então percebi, de modo ainda contido, os detalhes ornamentais do palco. Havia nuvens grotescas num céu cinza chumbo, tendendo ao negro. Diante do mar assustador ondas imensas se agigantavam, como se estivessem prestes a romper o alambrado. Um velho barbudo e desdentado, tendo um linga por cajado, desfilava entre bêbados e equilibristas. Ambos se confundiam no picadeiro. Outros tantos ociosos vagavam entre putas e cafetões, num cabaré lúdico de linhagem lúgubre, síntese de um ocaso iminente.
Sendo iminente, o ocaso se elevou em oratória:
“Então, se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na Terra, e isso lhe pesou no coração”.
Várias senhas foram distribuídas ao acaso, enquanto palhaços dançarinos brincavam numa piscina de bolas coloridas. Atraiu-me a atenção o fato de cada uma das bolas representar eventos importantes da nossa história.
Uma arca de rompante imperioso foi içada por alavancas bem calculadas, rompendo as ondas como um falcão alpino de asas reluzentes. Remadores truculentos içavam velas brancas ao sol de um quase dezembro.
DESERDAI VOSSA CULTURA DOS ACERVOS EXPURGADOS DE UMA EPOPEIA EXTINTA! POIS VOSSO TEMPO SE EXTINGUE, ESCOA POR VOSSAS MÃOS TRÊMULAS, DIANTE DE UM ÓCIO VAIDOSO.
Uma confusão de línguas manifestou-se. Jargões se fizeram ouvir. Alguns defendiam liberdade para as mulheres, os pássaros e os besouros. Outros blasfemavam contra Deus e o Diabo. Ainda outros defendiam melhorias salariais e condições salutares de trabalho. Da sala contígua chegavam notícias sobre índices comercias, descobertas científicas e aceleração do consumo.
O ocaso, alheio à turbulência incontida dos ânimos, voltou a se pronunciar:
“Farei desaparecer da face da Terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves do céu…”
Um silêncio de morte fez-se ouvir no umbral, enquanto o Louco (art. 021) acenava, com uma rosa branca, ao público estupefato. Acompanhando os seus passos vadios o uivar do Lobo, e um cetro em forma de cajado a apontar o “Em cima e o embaixo”.
Então, a porta frontal foi aberta ao público e por ela entraram políticos de todas as estirpes, acompanhados de onipotentes empresários, todos em nome da corte do rei. Acenavam ao público com aumentos reais, além de bônus e vantagens promocionais, bastando para isso tempo de casa e dedicação notória e confirmada.
As vozes em uníssono cantaram odes aos emissários do rei, enquanto abraçavam amigos, esposa e filhos, num contentamento sem igual.
Novamente, o Louco (art. 043), ordenou aos remadores que seguissem viagem. Com total desprendimento jogou sua rosa branca ao público, vendo-a esmagada sob os sapatos dos satisfeitos e afortunados. Enquanto usavam o “linga em forma de cajado” para convencer àqueles que, ainda incrédulos, insistiam em não se curvar perante tamanha benevolência.
As cortinas se fecharam e a algazarra silenciou. Fui novamente levado pelas mãos da Dançarina que, completamente nua, conduziu-me através de um extenso corredor pouco iluminado, antes de ganhar a rua do outro lado da noite. Lembrei-me então da senha distribuída ao acaso, e abrindo-a li:
O DILÚVIO PÕE FIM À VOSSA CULTURA, ENQUANTO A ARCA PRESERVA OS VALORES DA PRÓXIMA.
Que assim seja!